Ex.mas Sras.
Dilma Rousseff
Presidente da República do Brasil
Izabella Teixeira
Ministra do Meio Ambiente
Marilene de Oliveira Ramos Murias
dos Santos
Presidente do IBAMA
Distinguidas senhoras,
Esta Carta-Documento Pública
escrita por pesquisadores, estudantes, representantes de organizações e
movimentos sociais, originária do Colóquio Concessão à Violência: A licença de
Operação de Belo Monte é mais uma busca obstinada de diálogo com o governo e a
tecnocracia estatal no Brasil.
Nesse evento analisamos as
decisões que implicam a destruição da vida social e cultural de Povos e de
milhares de pessoas que dependem de territórios e de seus recursos na região do
rio Xingu e cujas formas de vida são transformadas irreparavelmente com a
construção do Complexo Hidrelétrico Belo Monte.
Aqui reafirmamos o exposto em
inúmeros documentos, livros, artigos, relatórios, dossiês, entrevistas,
encontros, ciclos de conferências, reuniões, ações civis e em novos estudos
sociotécnicos com observações pormenorizadas sobre o agravamento da situação
social dos Povos indígenas, pescadores, agricultores, trabalhadores e moradores
da cidade e com pesquisas detalhadas sobre o avanço cego da destruição de
ambientes.
De forma pontual, esses estudos
se remetem às inconsistências e incompletude do EIA/RIMA, apontadas pelo Painel
de Especialistas - Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do
Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte (2009). Precisamente nele se
sumarizaram as recomendações de execução de estudos complementares sobre os
efeitos sociais e ambientais dessa obra de intervenção. As inconsistências
observadas desde os primeiros anúncios e a ação atenta do Ministério Público
Federal - Pará fizeram o IBAMA introduzir Condicionantes desde a outorga da
Licença Prévia (2010).
Parte dessas Condicionantes não
foi cumprida - foi empurrada para a Licença de Instalação. Agora, os
empreendedores solicitam a Licença de Operação sem ter atendido a elas,
produzindo com esse posicionamento uma sobrecarga de Condicionantes, que ficam
para um tempo sem tempo, por ausência de indicativo de agenda de cumprimento.
Desta forma, abstendo-se de seu tratamento no tempo adequado, arrastam-se
consequências dessa negligência e desleixo institucional, técnico e político.
Dezenas de estudos técnicos sobre
o Complexo Belo Monte, realizados pelos praticantes de uma ciência em
interlocução com a sociedade, em universidades e instituições públicas, têm
diligentemente perscrutado as formas de violência política que se observam pela
exclusão de Povos, Comunidades e grupos de decisões que lhes concernem e ainda
pela imposição de uma política de resignação. Violência jurídica pela
deturpação das normas, códigos e convenções da qual o Licenciamento Ambiental é
o exemplo mais burlesco. Violência simbólica pelo não reconhecimento de outros
projetos sociais de existência e do direito de expô-los, defendê-los e
realizá-los.
A
violência está instalada e se exacerba, fazendo dos grupos que sofrem seus
efeitos os sem tempo presente e futuro. Essa violência confere-se pelo
descumprimento da Constituição Federal e de Convenções Internacionais -
Convenção 169 da OIT/1989; Principio 10 da Declaração do Rio sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento/1992; Protocolo de Quioto/2005.
O
governo ignora, constrange e descumpre a Constituição Federal, especialmente no
que diz respeito às Terras Indígenas, aos Povos Tradicionais e aos direitos
consagrados: direito à moradia; direito à saúde, direito ao trabalho; direito
dos migrantes; direito à educação; direito de acesso à justiça; direito ao
ambiente. O governo obedece a uma única estratégia política, a de anular
qualquer consulta para os atingidos, fechando-lhes o espaço democrático
necessário para uma discussão pública permanente e esclarecida que exige uma
obra desse porte e efeitos ambientais. De forma ardilosa utiliza-se do viés
jurídico do instituto da suspensão de segurança, criado pelo art. 4º da Lei
4.348/64 e busca produzir meios de convencimento a todo custo para reduzir as
ações políticas dos agentes sociais, e ainda passa a criminalizá-los,
intimidá-los e constrangê-los fisicamente pela interdição de espaços e vias de
circulação.
Quais têm sido as estratégias do
Consórcio Norte Energia, da burocracia de Estado (Ministério do Meio Ambiente,
IBAMA, Tribunais de Justiça), dos grupos econômicos e políticos conluiados
nesta obra (empresas, financiadores)?
O consórcio Norte Energia nega as
questões sociais que permanecem inalteradas. Entre as mais preocupantes estão
os chamados reassentamentos dos moradores de bairros, vilas, ilhas e povoados,
pois neles não são respeitadas as condições mínimas de reprodução das formas de
vida social e trabalho de pescadores e agricultores, indígenas e não indígenas.
Nega outros trabalhos e saberes que desaparecem seja pela falta de
matéria-prima, seja pela falta de consumidores, como os oleiros, os areeiros,
os carroceiros, os pilotos de barcos e voadeiras.
A
burocracia de Estado, políticos e técnicos estão envolvidos na produção de um discurso
de legitimação que tem como principal missão reduzir as incertezas técnicas,
minimizar os custos financeiros e produzir delírios ufanistas. Uma estratégia é
manobrar sobre as variações dos grandes números. A exemplo do custo e “saúde
financeira” do empreendimento.
O
valor do investimento inicial da obra em 2010 que era de 19 bilhões de reais,
foi revisado em 2012 e elevado para R$ 28,9 bilhões. Em 2014, sobe novamente
para R$ 32 bilhões de reais. Essas variações mostram o comprometimento da saúde
financeira do empreendimento. Outra variação é relativa ao preço do MWh, que
foi leiloado em 2010 por R$ 79,00. No entanto, o BNDES, ao financiar 80% do
custo total da obra, exigiu que a Eletrobrás garantisse a compra de 20% da
energia a ser produzida (a preços do “mercado livre” de energia, constituído
pelas grandes empresas consumidoras) no valor de R$ 130/MWh, cerca de 70%
superior à tarifa definida no leilão. Com isto, ocorre uma transferência do
prejuízo para os consumidores comuns.
Outra estratégia para produzir
essa legitimação está em driblar as informações sobre a "área diretamente
afetada" e sua relação com a potência instalada, cuja finalidade é criar
artificialmente um índice ambiental favorável. Para isso considera apenas a
área alagada e exclui as áreas submetidas à restrição hídrica na Volta Grande
do Xingu, igualmente afetadas, chamadas de sequeiro. Exclui também a jusante da
barragem do sítio Belo Monte. Os pesquisadores reunidos no Colóquio questionam
o índice apresentado pelas empresas e agências do setor elétrico, apontam a sua
insuficiência e questionam o IBAMA/Dilic. O ineditismo desta obra-intervenção
não exigiria um indicador ambiental rigoroso e efetivo quanto à consequência
ambiental real e não meramente administrativo?
Adicionalmente, observa-se que as
instituições responsáveis pelo licenciamento ambiental desviam a atenção de
questões cruciais da dinâmica e equilíbrio da bacia do rio Xingu e sua
vinculação com a complexa bacia do rio Amazonas. Já no EIA/RIMA do Complexo
Belo Monte é desconsiderada uma categoria importante - a bacia hidrográfica. Em
seu lugar multiplica-se o discurso das Áreas - AII, AID, ADA, AIA - e sua
utilização. É impossível dimensionar com as pesquisas realizadas os efeitos do
Complexo Hidrelétrico sobre a Bacia do Xingu e do Amazonas, que está em sua
foz.
O modo como se processa hoje o
licenciamento ambiental permite até que haja aninhamentos e acomodações de
outros projetos, com licenciamento ambiental estadual, como é o caso da
exploração de ouro pela Belo Sun, que realizará a lavra na Volta Grande.
Trata-se de efeitos cumulativos imprevisíveis para os Povos, Comunidades e
grupos sociais e para os ecossistemas.
Nesse contexto, empurram-se
condicionantes, misturam-se licenciamentos e os agentes - burocracia de Estado,
políticos e técnicos - acompanham o cronograma de obras com flexibilidade,
permissividade e desapreço ao cronograma de cumprimento das Condicionantes.
A
intervenção nos ambientes da região do rio Xingu continua célere sem mensurar
os efeitos sobre cada ecossistema e cada recurso. O Complexo Belo Monte está
inserido em uma região de importância biológica extremamente alta: Volta Grande
do Xingu, rio Bacajá, Cavernas na região da Volta Grande (parte da Província
espeleológica Altamira-Itaituba), Tabuleiro do Embaubal, região da Terra do
Meio, bem como Terras Indígenas. O EIA produzido sobre Belo Monte foi
apresentado sem a completude de amostragens e análises e não concluiu sobre a
dimensão dos impactos sobre diversos representantes da fauna aquática, nem
tampouco mensurou adequadamente os impactos sobre a pesca e diversas formas de
uso destes recursos naturais pelos Povos indígenas e tradicionais.
A
Licença de Instalação foi concedida sem que estudos sobre ecossistemas
aquáticos no rio Bacajá e projeto de investigação taxonômica da ictiofauna
tivessem sido concluídos. No monitoramento, desconsideram-se as mudanças
abruptas sobre a ictiofauna no rio Xingu que possui centros de diversificação
de espécies, de biologia e hidrologia únicas. O sistema de cavernas da região
também não tem estudos com metodologia adequada de amostragens que dê suporte a
sua preservação.
Terras
Indígenas continuam intrusadas e abertas ao saque e à destruição, como o estão
as Terras Indígenas Cachoeira Seca; Terrã Wãgã (Arara da Volta Grande) e
Apyterewa, constituindo-se uma flagrante condicionante não cumprida. Os
pescadores e suas estratégias tradicionais de pesca estão totalmente ameaçados.
Os impactos que são considerados na fase de construção não têm sido devidamente
avaliados, como a turbidez da água, a supressão e desmatamento das ilhas, as
explosões cotidianas de rochas, a supressão de praias e o deslocamento de
bancos de areias. Para o período de operação, efeitos sobre a perda de
biodiversidade, sobre o empobrecimento genético de populações, bem como
estimativas sobre determinadas espécies, que já se reconhecem fortemente
ameaçadas como os quelônios e peixes importantes na economia e na alimentação
locais, não estão sendo dimensionados. Os inventários bióticos previstos no
Termo de Referência e contidos no EIA foram restritos a alguns grupos da fauna
aquática e terrestre e sequer há parâmetros adequados para estimar a perda.
Estas
ações marcam a destruição de territórios e ecossistemas e suas respectivas
histórias de vida forjadas ao longo do tempo histórico e geológico. Apesar de
todos os impactos previstos e não previstos no EIA, ainda assim, as licenças
foram concedidas, evidenciando uma valoração menor aos ecossistemas perdidos ou
abruptamente alterados - uma escolha pela perda. Perda de inúmeras espécies da
fauna terrestre, aquática e subterrânea e microbiota associada na bacia do Rio
Xingu, o que nos conduz a afirmar que está se escolhendo um ecocídio.
Nesse
processo de transformação, verificam-se ainda fatos que evidenciam situações de
ilegalidade e de convulsionamento social, decorrentes da instalação do projeto,
como os surtos de exploração ilegal de madeira em Terras Indígenas; diminuição
e perda da produção agrícola; redução do estoque de peixes; aumento de preços
da cesta básica e moradia; superexploração do trabalho e outras ilegalidades
nos canteiros de obras; aumento de acidentes de trabalho; elevação das taxas de
homicídio; de violência doméstica; de prostituição infantil; precarização do
atendimento à saúde; aumento de episódios de doenças coronarianas e mentais e
elevação da taxa de mortalidade.
A
construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, contra todos os alertas dados
ao longo de anos, contraria princípios dos direitos humanos, e tem levado ao
limite a vida de Povos índigenas, ribeirinhos, pescadores, agricultores e
trabalhadores no Xingu. E contra o apelo de suas vozes, de suas manifestações
junto ao poder público, do embasamento dos processos jurídicos impetrados pelos
Ministérios Públicos, Federal e Estadual, está ocorrendo a morte, com alto grau
de perversidade, de coletividades e culturas.
As dimensões dessa destruição e
constrangimento físico e psicológico dos Povos, Comunidades e grupos expulsos e
compulsoriamente deslocados, que comprometem a transmissão de saberes entre
gerações, nos levam, - a nós, participantes do Colóquio Concessão à Violência:
A licença de Operação de Belo Monte - a caracterizar este processo como evento
de genocídio. Promovido em nome da geração de energia, semelhante às outras
hidrelétricas já construídas e planejadas, em consonância com os interesses
barrageiros das indústrias de construção civil, de equipamentos elétricos e das
empresas de mineração que continuam a impor o uso das bacias hidrográficas da
Amazônia, segundo seu próprio arbítrio. Esses interesses estão dispostos a
instalar 153 hidrelétricas na Pan-Amazônia, 40 das quais na Amazônia
brasileira.
O
Brasil, como um todo, faz-se cúmplice contemporâneo do genocídio do etnocídio e
do ecocídio que estão a ocorrer na Amazônia. Aos Povos do Xingu, o direito à
vida, no sentido profundo do que isso significa. Essa é a única possibilidade,
e portanto, inegociável, da dignidade da sociedade brasileira, de honrar os
compromissos escritos na sua história e recompor a condição de cidadania que o
Estado tem o dever de preservar.
O autoritarismo que domina o
Brasil apresenta uma de suas formas mais violentas na política energética e
denunciamos eventos simultâneos de ecocídio, etnocídio e genocídio que se
concretizarão com a concessão da Licencia de Operação de Belo Monte.
Apresentamos e levamos adiante
esta denúncia com a convicção de que esta combinação de genocídio, etnocídio e
ecocídio se insere no conflito global em relação ao meio ambiente e convidamos
todos os pesquisadores e estudantes, bem como todas as pessoas que não
compactuam com a violência, a manifestar seu repúdio a este tipo de projeto e à
licença de operação do complexo Belo Monte, posicionando-se a favor dos Povos
da Amazônia, suas Comunidades, culturas, territórios e ecossistemas.
Belém, 30 de junho de 2015.
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