segunda-feira, 13 de junho de 2011
Belo Monte desmoraliza licenciamento ambiental, artigo de Sérgio Abranches
O que há de comum entre o exame das mudanças no Código Florestal e o licenciamento de Belo Monte?
Ambos desmoralizam o marco regulatório e legal. Um gerou e vai gerar mais desmatamento e desmando no campo. Outro quebra a confiança no processo de licenciamento e leva a um afrouxamento geral das regras ambientais.
Além disso são marcado pela falta de transparência do processo e pela distorção dos argumentos, apresentados como se fossem técnicos e indiscutíveis, quando são parciais e discutíveis. Dou exemplos de argumentos insustentáveis usados em cada caso.
De um lado, os ruralistas dizem que não é possível produzir com o Código Florestal como ele está e que faltarão alimentos. Mas o fato é que existem produtores que estão em conformidade com o código e muitos técnicos de peso mostram que é possível conciliar produção e a preservação de APPs, matas ciliares e reservas florestais mínimas. O que as evidências indicam é que APPs, matas ciliares e cobertura florestal mínima fazem bem à agricultura.
Do outro lado, os defensores de Belo Monte dizem que se a hidrelétrica não for feita, sua geração teria que ser suprida por térmicas a óleo, muito piores ambientalmente. Nem mesmo a afirmação de que uma térmica é sempre pior que uma hidrelétrica em termos de emissões é verdadeira em todos os casos. Há estudos (baixe aqui) mostrando que algumas hidrelétricas brasileiras emitem mais que termelétricas a carvão(veja aqui), enquanto outras, embora melhores que aquelas que usam carvão, são piores que as que queimam óleo.
Argumentam que a alternativa eólica é cara e a geração intermitente por causa do regime dos ventos. O custo das hidrelétricas está sempre subestimado. Belo Monte começou em R$ 19 bilhões, passou a R$ 27 bi e ninguém acredita que vá custar menos de R$ 30 bi, na melhor das hipóteses. O custo das eólica é sempre superestimado. A diferença no custo da transmissão entre uma e outra nunca é considerada.
Com relação à intermitência, é um problema tecnicamente superável. Mas, no Brasil, ele simplesmente não existe. No Nordeste, o vento sopra com constância e mais forte no período da seca, quando os reservatórios do Sudeste estão baixos. A eólica é o complemento ideal para as hidrelétricas.
E ninguém sequer menciona a energia solar, fotovoltaica. No Brasil há áreas em que a insolação anual excede os requisitos de máxima eficiência de geração fotovoltaica. São áreas áridas, quase desérticas ou desérticas, que se beneficiariam com a implantação de usinas fotovoltaicas. Ao contrário da região Amazônica que perde, para que a eletricidade seja exportada para o Sudeste a alto custo.
Custo? Que tal considerar o custo total, considerando geração, transmissão, danos ambientais e emissões de gases estufa? Que tal dar preço ao carbono e incluir no custo dos projetos?
A falta de transparência, no caso do Código Florestal esteve na unilateralidade do processo, que não considerou opiniões de técnicos, cientistas, especialistas e interesses afetados pelas mudanças. As audiências eram pró-forma, não para efetivamente ouvir e levar em consideração os argumentos. No caso de Belo Monte, é mais grave e profunda, porque atinge o próprio processo de licenciamento e o desmoraliza.
Quem ler o documento do Ibama verá que ele atropela as próprias regras da agência para as etapas do licenciamento, ao considerar cumpridas condições obrigatórias para o prosseguimento do processo, que o próprio documento diz que estão apenas “parcialmente cumpridas”. Sem dizer em que extensão foram cumpridas. Pode ir de perto de zero a 100%. Claro que uma ação incipiente é muito diferente de outra, que foi 90% realizada. Ambas podem ser consideradas como “parcialmente cumpridas”. (O documento pode ser baixado aqui) Miriam Leitão faz uma leitura elucidativa do documento em sua coluna de hoje no Globo.
Outro exemplo, é o das linhas de transmissão, que têm a ver com impacto ambiental não avaliado e com o custo total da energia de Belo Monte. O documento diz que a empresa apresentou apenas “traçado orientativo” (sic). A condição era que apresentasse “projeto básico de engenharia, com seu traçado definitivo sobre imagem de alta resolução e discriminação das faixas de servidão e acessos a serem eventualmente abertos”. Essa diferença nunca poderia ser considerada atendimento “parcial”. A discriminação determinada pela agência permitiria determinar o desmatamento causado pela implantação das linhas, por exemplo. Sem falar em que um “traçado orientativo”, signifique o que significar, não permitiria apropriação adequada nem de custos de implantação, nem de danos ambientais. Logo o custo do kW entregue continuará sendo um mistério e o dano ambiental seguramente maior do que o Ibama pode avaliar.
As exigências de saneamento não foram cumpridas. O documento do Ibama considera isso “preocupante”. Preocupante podemos dizer nós da sociedade. A agência ambiental tem obrigação, de dizer não ao pedido de licenciamento, diante dessa falha grave. É grande o risco para a saúde pública, aumento da mortalidade infantil e piora da qualidade de vida e do bem-estar das populações. Isso é muito mais que preocupante.
Preocupantes mesmo são o comportamento do Ibama e a atitude do governo. O Ibama está claramente licenciando o que não tem condições de ser licenciado. O governo se manifesta como se tudo que fizesse fosse perfeito. Tem convicções cuja solidez rivaliza com a fé inabalável das pessoas santas.
Um ministro diz que o colapso do consórcio, por causa das dúvidas sobre a viabilidade econômico-financeira do projeto, não tem importância, que há filas de investidores querendo entrar. No mercado se diz outra coisa. Só haverá investidor, se o governo pagar a conta. Isto é, o investidor privado será simbólico. Vai contribuir com uma mão e receber do governo de volta, com lucro, com as outras mãos. Mesmo quando constrangido a entrar, como aconteceu com a Vale.
Outro ministro diz que as obras não afetarão qualquer comunidade indígena. Outra autoridade diz que de forma alguma haverá conflitos e quebra-quebras, como houve em Jirau. Outro, ainda, diz que o recrutamento da mão de obra será prioritariamente local, portanto não haveria grande afluxo de pessoas.
Mas o que se sabe e se viu é que não há oferta local de força de trabalho para que o recrutamento seja feito predominantemente na região. Mesmo que houvesse, isso não estancaria a migração em massa de pessoas, não apenas para trabalhar nas obras, mas para explorar o entorno, com atividades legais e ilegais, produzindo inevitável aumento do desmatamento, da criminalidade, das doenças e do potencial de conflito. Ainda mais sem infraestrutura e saneamento como o próprio Ibama reconhece.
Mas são todos peremptórios, nas suas afirmações. Não há dúvidas. Temos um governo onisciente, que conhece o futuro, mesmo quando para nós ele esteja coberto pelas brumas densas de numerosas dúvidas. Para este governo não há incertezas ou riscos. É claro que esse voluntarismo todo é um grande risco para o Brasil.
Ou estamos diante de uma nova religião. Tudo é questão de afirmação de fé. Nesse caso, seria até heresia levantar questões técnicas e científicas.
Diante dessa atitude, de um documento desses, fica difícil confiar. O licenciamento ambiental está sendo desmoralizado no Brasil. Ele fere claramente a legislação ambiental. Mas a ministra do Planejamento diz que qualquer liminar será derrubada, como foram todas as outras. O presidente do Ibama diz, com a expressão mais séria possível, que não teme ações do Ministério Público, porque está seguro da “higidez técnica e jurídica (sic) dessa licença que está sendo emitida”.
Com licenciamento falho, dúvidas sérias no projeto de engenharia e no desenho financeiro, Belo Monte deveria obviamente ser repensada. Mas será tocada a toque de caixa, até começarem a aparecer as consequências dos erros de decisão.
Dá para prever o que acontecerá, se essas consequências aparecerem ainda neste governo. Reagirá como nos outros casos. Quando as coisas dão errado, o governo faz que não é com ele. Distribui broncas a terceiros, afirma que tudo será retificado. E todos esquecemos piedosamente, para que tudo continue como está e se cumpra a vontade incontrastável desse governo de sábios.
Sérgio Abranches, PhD, cientista político, é pesquisador independente sobre Ecopolítica, a relação entre o desenvolvimento econômico, o progresso social e o meio ambiente, com ênfase na mudança climática e na Amazônia. É comentarista da rádio CBN, onde mantém o boletim diário Ecopolítica. É co-fundador de O Eco, agência de notícias ambientais apoiada pelas fundações Avina e Hewlett, dedicada a ampliar a pauta ambiental na imprensa e treinar jovens jornalistas na cobertura sobre meio ambiente no Brasil. Manteve uma coluna sobre questões ambientais, segurança energética e mudança climática em O Eco por seis anos. É colaborador do blog The Great Energy Challenge, uma parceria entre o Planet Forward e a National Geographic. É autor de Copenhague: Antes e Depois, Civilização Brasileira, 2010, sobre a política global do clima. A matéria sobre os Muriquis da Reserva Montes Claros, Caratinga, MG, em co-autoria com a colunista de O Globo, Miriam Leitão, e publicado simultaneamente em O Globo e O Eco, recebeu o prêmio de jornalismo ambiental da SOS Mata Atlântica.
Artigo originalmente publicado no Blog Ecopolítica.
EcoDebate, 13/06/2011
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