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Era noite de domingo, quatro de maio de 1982. Estava em casa com minhas filhas, ainda crianças, quando o telefone toca. Do outro lado da linha uma voz conhecida diz “venha aqui pra casa agora.
Temos uma reunião de emergência. E você vai ter que viajar hoje à noite”. Respondi ser impossível porque não tinha com quem deixar minhas filhas. E então a voz, responde “estamos mandando alguém para ficar com as meninas”.
A reunião era na casa de Cláudio Romero, antropólogo e indigenista. Um combatente. Havia outros indigenistas e funcionários na Funai. Conspirávamos. Foi quando decidiram ser eu a “pessoa certa” para uma missão delicada e quase arriscada. Fui designada, por ser jornalista de um importante veículo (Folha de São Paulo), a escoltar um ônibus que transportava 60 índios do povo Xavante. E eles estavam pintados de vermelho. Só exigi levar o fotógrafo que sempre me acompanhava.
Concordaram. Embarquei no bravo fusquinha AD-1715, sem carteira de motorista, documento que só tirei depois dos 50 anos. Sem mapa, porque conheço os caminhos que me levam à Amazônia, segui viagem.
Já era tempo de frio nos sertões de Goiás. O encontro foi marcado no trevo de São Luís dos Montes Belos. E lá nos esperava o saudoso Antonio Moura, jornalista do Porantim.
A madrugada esfriava cada vez mais. O jeito era recorrer a uma cachaça para não congelar dentro do carro.
Ser mulher e ter a ousadia de entrar num restaurante de beira de estrada, às 3 da manhã para pedir uma “azuladinha” é igual brincar na montanha-russa. Mas, alertada por Guimarães Rosa, sei que viver é perigoso. Muito perigoso. Tomei uns goles e até exorbitei, puxando conversa no balcão.
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O prédio borbulhava. Na calçada da entrada principal, 180 policiais militares com capacete, escudo, cassetete, armas no coldre, esperavam a ordem para atacar. Lá dentro, o pandemônio.
Aos 60 xavantes se juntaram mais 40 de 16 etnias diferentes. Pankararu, Makuxi, Suyá, Karajá, Kaingang, Terena, Nambiquara, Trumai, Parakategê, Guarani, Kaxinawá, enfim, todos os índios que estavam em Brasília reivindicando seus direitos se uniram naquele momento de resistência.
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Volto para minha Olivetti e descrevo, com detalhes, o dia que começara na noite de quatro de maio e se estendera por todo o dia 5. Matéria de primeira página de todos os grandes jornais do país.
Vou para casa levando cinco índios que passaram a noite tramando a nova ocupação. Ela aconteceria menos de 12 horas depois. Minhas filhas dormiram na minha cama, aconchegadas ao meu corpo para matar as saudades da mãe sempre ausente. E, na biblioteca, armamos redes para os hóspedes insones.
Aquela foi a primeira ocupação de uma propriedade do Governo. Uma ação inédita que depois se repetiria pelo Brasil ao longo das resistências.
Por que será que tantas lembranças turbilhonam minha cabeça nessa madrugada de cinco de maio? Por que não jogar essas lembranças no fundo da arca? Porque Belo Monte, essa hidrelétrica planejada pelos ditadores do regime militar e executada por um Governo que prometia mudar a história dos povos deserdados, é a refilmagem de um momento que vivi e que se repete como um pesadelo contínuo. Porque as cenas da ocupação dessa obra criminosa, que vai destruir meu mágico Xingu são o testemunho mais vivo de que a luta na defesa da sobrevivência humana será prolongada. E só derrotaremos o seleto grupo de convidados para o banquete quando as palavras de Giuseppe Tomasi, duque de Palma, príncipe de Lampedusa, – “se queremos continuar como está, vamos mudar para que nada se transforme”- , enxovalhada pelo excesso de uso, seja atirado ao lixo não-reciclável da História. Caso contrário, o desabafo feito por David Yanomami, perplexo e triste, sentado no sofá da minha sala será citada como profecia: “Eles fazem tanto buraco no chão para buscar ouro que um dia a terra vai cair porque a riqueza do fundo da terra é que segura o mundo para não despencar tudo”.
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