Tal como nos palanques eleitorais de outrora, o presidente da República tem se manifestado enfaticamente, falando contra supostos opositores de seus projetos de governo que, para ele, torcem para que tudo dê errado. As críticas ao projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), seriam, conforme declarou o Advogado-Geral da União, Luis Inácio Adams simplesmente, “esperneios de perdedor”.
Lula, por sua vez, reclama: “essa gente, desde que eu tomei posse em 2003, eles levantam de manhã e vão dormir à tarde fazendo figa para que tenha um apagão neste país, para eles poderem dizer que o governo foi incompetente na questão energética”.
Talvez o presidente da República já tenha se esquecido o significado da palavra democracia, e das inevitáveis relações de força quando se trata de assegurar um verdadeiro e amplo diálogo. E ele se esqueceu, possivelmente, porque vive cercado de pessoas que a tudo dizem sim! E nestes tempos de declarada campanha para a candidata Dilma Rousseff, muitos membros do governo – inclusive antigos assessores de movimentos combativos que marcaram a história desse país – exercem hoje a contraditória função de abrandar os ânimos daqueles que esboçam insatisfações, de barganhar apoios e também de impedir que certos canais de comunicação alternativos manifestem abertamente críticas ao modo “lulista” de governar.
A execução do que, nos vergonhosos tempos da ditadura, se poderia chamar de “serviço sujo” e controle de informações, hoje é feito de modo voluntário por muitos ex-militantes de movimentos populares que conhecem por dentro as estratégias de resistência e de luta indígena, popular e campesina. Nas palavras do presidente, “Belo Monte, Jirau e Santo Antônio são coisas que nossos adversários torcem para não dar certo”. Mas, quem seriam os supostos adversários?
Ao que tudo indica, não são os partidos de oposição ao governo – se é que se pode falar em oposição nas atuais circunstâncias – os que apresentam resistências a estas usinas e ao projeto de expansão energética. A verdadeira oposição vem de alguns movimentos populares, dos povos indígenas, de setores progressistas da Igreja, em suma, daqueles que o presidente Lula chama de “adversários” e que, de fato, são os que resistem e se opõem a um projeto de desenvolvimento unilateral e contrário à vida.
A palavra sustentabilidade, que irrompe em nosso cotidiano desde a década de 1990, é hoje central em qualquer projeto que se planeje implementar. Mas quando se pretende consolidar uma plataforma grandiosa para a futura candidata ao Governo Federal, que conta com o apoio declarado do presidente, os custos sociais, ambientais e éticos, se convertem em questões “menores”.
Se a preocupação do governo fosse, efetivamente, evitar um apagão, este teria que ouvir as diferentes propostas de setores sociais dedicados ao estudo de questões energéticas – um debate amplo que se realiza em diferentes meios de comunicação, em universidades, em institutos de pesquisa, no Brasil e no mundo.
Não há consenso nem mesmo em segmentos do governo, sobre os caminhos escolhidos para assegurar a oferta de energia no futuro e evitar um suposto “apagão”. Há grupos que defendem a construção prioritária de hidrelétricas, solução mais fácil, e que, de quebra, possibilita que se arrolem recursos públicos para beneficiar empresas privadas (e não é por acaso que os empresários e os banqueiros estejam entre os que mais exibem seu contentamento e não poupam elogios à política econômica de Lula).
Outros grupos, dentro do próprio governo, apostam em fontes alternativas de produção energética, tal como a eólica, que em alguns países é responsável pela oferta de aproximadamente 40% da energia distribuída. Outros, ainda, defendem a necessidade de melhorar o aproveitamento das fontes já existentes, evitando desperdícios, por exemplo.
Há uma infinidade de estudos mostrando alternativas viáveis para contornar os riscos de escassez de energia, mas todo esse debate, bem como as divergências quanto aos melhores caminhos para assegurar o crescimento do país não interessa, neste momento, ao presidente Lula. Ele celebra as “vitórias” contra os supostos adversários, ele declara seu descontentamento com aqueles que se opõem aos seus imponentes projetos.
Iniciativas para evitar que se realizasse o leilão de concessão da Usina de Belo Monte foram tomadas por diferentes setores, incluindo o Ministério Público Federal, tendo em vista várias irregularidades tão bem demonstradas nas ações ajuizadas em todo o processo. Mas, para o Advogado-Geral da União, aqueles que entraram com ações judiciais desejavam “criar nuvens de suspeitas” sobre a construção desta obra – como se ela não fosse uma das mais polêmicas obras desde os anos 1980 e como se tal discordância fosse expressão de um capricho de ONGs que atuam no país.
No mesmo tom, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes, afirmou que o Ministério Público não deveria servir aos interesses de ONGs. Para ele “é preciso ancorar esse debate sem paixão. É comum que ONGs façam cooptação do MP para as suas teses” (Ongs que, ressalta ele, são financiadas por empresas internacionais). E os velhos fantasmas da internacionalização ressurgem vigorosos – em outras palavras, quem não é favorável aos projetos do presidente, é contra a nação, e a semelhança com discursos de tempos de autoritarismo não parece ser coincidência.
Neste “belo monte” de argumentos que defendem a hidrelétrica como algo inevitável, não se permite falar claramente do desmatamento de 118 km2 de floresta, ou do represamento de uma área superior a 516 km2, ou da emissão de gás metano (e do efeito estufa) e menos ainda, da imensa área que estará sujeita à seca e que hoje possibilita a existência de incontáveis espécies vivas, que o presidente costuma referir, pejorativamente, como “alguns bagres” ou “algumas pererecas”, coisinhas insignificantes diante do fascínio de tão grandiosa obra.
Para Lula, as pessoas que dizem que a usina terá grandes impactos ambientais não conhecem o projeto, ou são mal intencionadas, ou são os tais “adversários políticos” que desejam o apagão. Mas vale ressaltar que não faltam desencontros quando se apresentam dados sobre a usina: ela é orçada, pelo governo, em cerca de R$ 19 bilhões, mas a iniciativa privada afirma que os custos ficarão entre R$ 23 bilhões e R$ 30 bilhões. Neste sentido, uma nota técnica elaborada por duas estatais de energia do grupo Eletrobrás, Furnas e Eletrosul, indicou que a construção desta usina é um mau negócio, e custará R$ 28,5 bilhões - bem acima, portanto, da previsão oficial.
Além disso, o consórcio vencedor poderá contar com financiamento de até 80% do valor do empreendimento, concedido pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), sem falar dos descontos que chegam a 75% no Imposto de Renda durante 10 anos.
O quadro se torna ainda mais crítico quando comparamos o pacote de incentivos à construção de Belo Monte com outros investimentos do governo Lula. A construção da usina implicará em gastos públicos (ou em recursos que o governo deixará de arrecadar) na ordem de R$ 6 bilhões, quase 02 vezes o valor orçado para o Ministério do Meio Ambiente, que é de pouco mais de R$ 3,5 bilhões; quase 04 vezes o orçamento do Ministério dos Esportes, de R$ 1,6 bilhões; mais que todo o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário, de R$ 5,7 bilhões; ou quase 03 vezes o orçamento do Ministério da Cultura, de R$ 2,2 bilhões. Belo Monte significa, em termos orçamentários, 454 vezes o orçamento destinado à erradicação do trabalho escravo no país, e 184 vezes o orçamento para Demarcação e Regularização de Terras Indígenas, que soma R$ 32 milhões.
Se o governo está disposto a gastar ou abrir mão de tamanho montante de recursos, a pergunta a ser feita é: por que não melhorar o aproveitamento de fontes de energia já existentes e canalizar tais investimentos a outras áreas estratégicas que possam articular o crescimento econômico a um adequado índice de desenvolvimento humano?
Diante dos inegáveis impactos ecológicos, econômicos, e sociais que serão causados pela usina de Belo Monte, insistir em sua construção só pode representar algum tipo de “apagão” na memória do presidente e de seus assessores. Ao invés de pensar em conspiração oposicionista para promover um apagão, o governo deveria estar imbuído do desejo de construir políticas justas e honestas para a população.
Porto Alegre (RS), 25 de abril de 2010.
Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi
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