sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Crônica de recentes agressões à Amazônia e a seus povos
http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/11/10/535/
Como não sou capaz de memorializar e escrever o silêncio com versos
perturbadores como os de Pádua Fernandes, deixo algumas frases à guisa
de testemunho. Está em curso um processo metódico, paulatino, diário de
agressão e rapinha contra a Amazônia e os seus povos, e assombra-me o
silêncio com que ele é recebido. Uma breve conversa com indígenas,
ribeirinhos, lavradores, ambientalistas, antropólogos ou jornalistas
radicados ou especializados na Amazônia é suficiente para dar indícios
do nível de revolta e da sensação de impotência que vai se disseminando.
Os insultos se sucedem com velocidade superior à capacidade de qualquer
um contabilizá-los, mas o Sul Maravilha—com honrosas exceções, como o
indispensável Leonardo Sakamoto—se cala ou racionaliza o saqueio com
argumentos chantagistas. Quando formos derrotados definitivamente, o dia
09 de novembro de 2011 ficará como um dos marcos da hecatombe.
Executivo, Legislativo e Judiciário deram ontem sua contribuição ao
“desenvolvimento”, essa palavrinha que, assim como na ditadura, é
hoje usada pelos governos para que o povo acredite no que eles querem,
como bem observou Eliane Blum, outra indispensável. As agressões de
ontem são parte de um contexto que vale a pena ser recordado. Uma
compilação completa demandaria um livro, mas ofereço algumas
pinceladas.
Depois de os repetidores de “informação” oficial afirmarem que a
“OEA” havia “voltado atrás” na medida cautelar contra Belo
Monte, terem a sua barriga imediatamente apontada e não se corrigirem, a
audiência convocada pela CIDH aconteceu e o Brasil, vergonhosamente,
fugiu pela primeira vez em sua história. Pior ainda, pagou o mico de
suspender os pagamentos à OEA, adentrando assim o terreno tipicamente
estadunidense de represália a organismos internacionais em função de
decisões que lhe desagradam – decisões estas tomadas com base em
tratados que o país soberanamente assinou, como, neste caso, a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho. Dias depois, um dos
maiores líderes indígenas do país, o Cacique Kayapó Megaron, destaque na
luta contra Belo Monte, foi exonerado de seu cargo na Funai sem um
telefonema, sem uma explicação, sem uma palavra sequer, descobrindo por
uma chamada telefônica de uma amiga que a sua exoneração havia sido
publicada.
Em seguida, os repetidores de “informação” oficial tiveram que
fazer um malabarismo maior para mentir. Afirmaram que a Portaria
Interministerial 419 “não mudava nenhuma regra” de licenciamento
ambiental. Seria um caso inédito na história da República: 23 páginas de
Diário Oficial para não mudar nada. Na verdade, como analisou a Fórum em
primeira mão e como protestou com contundência o manifesto de dezenas de
organizações indígenas e indigenistas, a Portaria 419 praticamente
transforma a Funai, o Ibama e a Fundação Palmares em órgãos carimbadores
às ordens do barragismo, do agronegócio, da mineração e das
empreiteiras. A portaria inclui até mesmo o requinte de crueldade de
conceder aos estudos feitos pelo empreendedor a prerrogativa de
estabelecer o que será caracterizado como “impacto direto” de uma
obra – e portanto merecedor de compensações sociais. Apesar de todas
as solicitações de audiência, pedidos de oitiva, cartas e petições, a
Presidenta Dilma parece ter decidido: ela simplesmente não conversa com
indígenas.
Enquanto isso, no Congresso Nacional, o representante direto do
Planalto na Comissão de Meio Ambiente, Jorge Viana (PT-AC), entrava mudo
e saía calado, enquanto o trator ruralista decepava mais um item do
Código Florestal, a recuperação das Áreas de Preservação Permanente
(APPs) em margens de rios. Sendo excessivamente generosa com o governo,
a Folha de São Paulo manchetou hoje que ele “fez nova concessão” aos
ruralistas, quando na realidade o governo atuou em estreita colaboração
com o ruralismo, reunindo-se até altas horas da madrugada anterior no
apartamento de ninguém menos que Kátia Abreu para combinar a retirada
das emendas e destaques – aquelas mesmas que os repetidores de
“informação” oficial prometiam que seriam a salvação da hecatombe
relatada por Aldo Rebelo na Câmara. Do lado de fora, a truculência
policial arrastava por 20 metros um estudante da UnB que protestava
pacificamente, para depois premiar-lhe com um disparo de pistola de
choque. Mas não se pode dizer que o estupro do Código Florestal não
tenha tido seu momento cômico: a Ministra do Meio Ambiente, Isabella
Teixeira, declarou que o Senado havia “melhorado” a obra de Aldo
Rebelo.
Mas ainda não acabou. O governo Dilma está às portas de realizar algo
que nem a ditadura militar conseguiu: liberar o garimpo em terras
indígenas. Reuniu-se nesta sombria quarta-feira a Comissão Especial
encarregada do assunto, cujo relator, Deputado Edio Lopes (PMDB-RR), já
declarou em microfone que o Brasil “não pode deixar de explorar” as
riquezas minerais que se encontram em terras indígenas. Enquanto isso,
Aldo Rebelo (desta vez em parceria com Ibsen Pinheiro) apronta mais uma
das suas, e vê a Comissão de Relações Exteriores aprovar seu projeto que
retira da União, sob a orientação da Funai, a prerrogativa de demarcar
terras indígenas, atribuindo-a agora ao Congresso Nacional. Mas os
indígenas ganharão, cortesia de Aldo Rebelo, ingressos para a Copa do
Mundo.
E isso não é tudo. No Tribunal Regional Federal 1, a relatora Selene
Almeida havia proferido um voto cristalino em favor da ação do MPF que
pedia a suspensão de Belo Monte por falta de consulta aos indígenas, tal
como exigido pelo artigo 231 da Constituição. Esse voto havia sido
depois empatado por Fagundes de Deus, ex-advogado da EletroNorte. O voto
de desempate da desembargadora Maria do Carmo em favor de Belo Monte,
mais um presente desta quarta-feira, incluiu a inacreditável frase
“pouco importa quando os índios serão ouvidos, se antes ou depois
da autorização do Congresso”. Era a “Justiça” brasileira cumprindo
sua vocação histórica, a de servir aos poderosos. O MPF recorrerá ao
Supremo para saber se nossa Carta Magna ainda possui o artigo 231.
Enquanto isso, na base governista na internet, silêncio sepulcral.
Devem ser “só uns 200 índios”. Quem sabe eles sejam nômades e não
enxerguem a hecatombe. Seria, pelo menos, um ótimo álibi para nossa
cegueira.
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